Dentro dos espelhos
Sempre fui fascinado por espelhos. Ou por superfícies espelhadas. Qualquer espaço, pequeno ou grande, que possua o brilho essencial para a reflexão, para a reprodução do mundo em sua ótica talhada e particular. Isso não significa que eu tenha dezenas de espelhos em casa ou que passe horas admirando o objeto, se ele tem moldura ou não, se está sujo ou limpo. Minha fascinação vem simplesmente do reflexo, desse universo ao contrário.
Minha fascinação pelos espelhos vem de uma profundidade que, na verdade, não existe. Se existe, não é alcançável a partir de fora — para alcançar um espelho, é preciso entrar nele. Infelizmente isso é impossível, ou possível se pensarmos em um espelho d’água, embora ele deixe de ser o que é no instante em que sua natureza é trespassada e desfeita. A mão que mergulha num espelho d’água não entra no espelho: entra na água. O espelho se dissolve no toque, ondula como uma folha de prata. E morre.
Quando criança, dentro do carro e sentado no banco da frente, eu ficava contemplando o espelho revelar a vida ao contrário. Gostava dos ângulos diferentes, achava a vida mais bonita ali, naquele outro lado. Imaginava se, dentro do espelho, eu pensaria o mesmo sobre o lado de cá. Talvez. A existência do avesso, sem alterar a ordem dos fatos, só colocada de outra forma; o sol nascendo no oeste (ou num leste alterado), minha mão esquerda escrevendo, ler um livro virando sua capa para a direita, mexer o brigadeiro em sentido anti-horário — algumas dessas coisas são realmente possíveis.
Ainda criança, tínhamos aqueles espelhos de três portas sobre a pia do banheiro. Eu gostava de fazer um jogo com as portas, colocar uma diante da outra, replicar o mundo mil vezes, repetir os reflexos num eco duro e infinito, cada vez mais impossível, que eu podia espiar por um canto da moldura de alumínio. Reverberar em colunas infinitas de reflexos aquela minha ingênua provocação. Também gostava de virar duas das portas diante do meu próprio reflexo, podia me ver como as pessoas me viam; acenava para mim com a mão direita, então via a mão “esquerda” acenando de volta. Era um tipo de reflexo que não interpretava a realidade, mas que expressava o olhar do espelho a partir de seu corpo reflexivo.
Parecia quase perigoso brincar nesse abismo impenetrável dos espelhos. Até mesmo os quebrados, com suas rachaduras metálicas dobrando de leve a realidade, possuíam o assombro raro de algo desconhecido.
O voo de um pássaro nas costas de um lago; fogos de artifício irrompendo para baixo numa poça de chuva; um prédio dentro de uma xícara de café; o céu azul na tela do celular virado para cima; silhuetas na vitrine de uma loja vazia; luzes arqueadas na lataria dos carros escuros; um rosto pendurado no côncavo de uma colher. A lista pode ser interminável, mas não quero aqui quebrar demais o mistério dos reflexos, invadir indefinidamente esses cosmos tão secretos e ao mesmo tempo sedutores.
No entanto, com cuidado e atenção, observe bem os espelhos. Faça parte deles, toque essa coisa misteriosa e intocável que se perde e foge, ágil, na paisagem que a luz não alcança. Alguma coisa há de ser descoberta. Se for, feche os olhos.
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